Ouvirá o Mundo o que nunca viu, lerá o que nunca ouviu, admirará o que nunca leu, e pasmará assombrado do que nunca imaginou.


Padre António Vieira, História do Futuro


terça-feira, 2 de novembro de 2010

Um texto de Miguel Coxe do 10º 1

A minha bandeira descoloriu


Estou em casa a observar através da janela a neve que cai lá fora e penso, ao mesmo tempo, que o Inverno veio mais uma vez acabar com os meus momentos de glória.
Estou sozinho, no quarto enorme, pintado de azul claro e com cheiro de homem.
A minha mãe tinha ido fazer as compras para os preparativos do final do ano. Este ano resolveram pôr-me de parte e sem o meu consentimento decidiram que iriam passar o ano novo na casa do tio Eddi Venturas que reside em Espanha. Eu ainda contestei com a decisão, mas ouvi da senhora Carla Botelho algo do género:
- Não temos que ficar em casa só porque tu queres!
O Senhor Botelho olhou-me com dureza no momento do lance, sempre com o seu ar de quem concorda que quando uma mulher fala não deve impor-se a ela, portanto a mãe, sendo uma mulher robusta, de cabelo ruivo e olhos de avelã, quando fala tem a razão do seu lado. Descobri que o meu pai age assim, porque lê demais, lê às escondidas um livro de título “ O livro das mulheres” e, certo dia, para não ficar na dúvida, perguntei-lhe por que lia algo que na minha opinião estava destinado a uma mulher e ele disse-me que agora é o tempo delas, que são elas a chave da felicidade. Bem, que horror! Tal foi o meu espanto! Eu acabava de completar catorze anos naquela altura. Eu era um rapaz do futuro e o mundo todo e os rapazes do futuro só tinham em mente Software, Windows, Motherboard, Internet, computadores e o Senhor Botelho tinha em mente compreender uma mulher como quem quer compreender uma flor a desabrochar numa manhã primaveril. Bem, esqueçamos isso, que são coisas sem valor. Vou falar um pouco em particular do meu herói. O Senhor Botelho é baixo, gordo, de pele pálida, de bigode espesso e cabelo escuro rente à cabeça. Antes ele era muito alto, hoje eu vejo que, quando se tem seis anos de idade, o mundo é um lugar enorme e complexo. Gosto de chamá-lo Senhor Botelho, porque as grandes personagens das nossas vidas merecem que o amor e a amizade da nossa parte lhes chegue com exagero. Sem o exagero, o amor e a amizade não são nada. É como a ausência de chama numa alma, é como parar, olhar e desistir quando nos aparece uma parede a frente. Digo isto porque para haver sentimento é necessário entusiasma-se bastante. Enquanto penso nessas questões, ouço a voz da minha mãe de repente, seguido do ruído da porta de casa.
- Umberto!
O Senhor Botelho entra a seguir com os seus sapatos que fazem um barulho estrídulo. Traz sacos nas mãos que também exercem o seu barulho. Não vou ao encontro deles, espero no canto da janela, fingindo contar uma história para mim. Lá fora a neve cai lentamente.
- Gaspar Umberto Botelho!
Berra o meu pai que sobe a escada para o pavimento superior.
- Sim! -respondo quando este alcança a porta do quarto e a abre devagar.
- Umberto, que fazes aí parado? - perguntou, com uma voz paciente e terna.
Não o olho ainda, tenho prazer em pensar como será o seu aspecto, partindo do princípio que só me dão o nome dele e me dizem que este nome pertencerá ao meu pai.
Imagino-o como Alcapone, caminhando naquela tarde, naquela neve, com o seu charuto na boca, com o coração quebrado por ter-se dado ao luxo de compreender uma mulher, quando lhe diziam que o amor é para os idiotas. Imagino Alcapone com o seu fato preto. A alma já há muito descoloriu como uma bandeira esquecida numa ilha. Traz numa das mãos uma lata de salsicha e no bolso da gabardina uma Coca-Cola. A barba estava por fazer. Imagino-o, eu Gaspar Botelho para quem, por acaso, se esqueceu do meu nome.
Outubro de 2010

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